O eco da contemporaneidade
Psicóloga, antropóloga e sociólogo falam sobre a possível relação entre o modo de viver em nossa sociedade e desequilíbrios de comportamento como a compulsividade
A tecnologia sempre evolui e traz cada vez mais praticidade ao ser humano. Hoje, o computador e a internet possibilitam a realização de tarefas em poucos minutos, transmitindo através de cliques ações que antes dependiam de idas ao supermercado ou ao banco. Compras, pagamento de contas, transições bancárias e até reuniões de trabalho podem ser feitas on-line. As chamadas redes de relacionamento mostram que inclusive a aproximação social das pessoas é priorizada quando acontece no meio virtual: o estudo Digital World (State of the Internet) avalia que 530 milhões de pessoas em todo o mundo visitam Orkut, MySpace, Facebook etc. Preocupamo-nos em saber quais são os novos e-mails na caixa de entrada do correio eletrônico, mas não nos empenhamos em dizer bom dia ao desconhecido que está no mesmo ponto de ônibus nas primeiras horas da manhã à caminho do trabalho.
Duas simples observações que podemos fazer em qualquer trajeto na cidade nos permitem perceber quão os hábitos urbanos tornam-se cada vez mais fechados. A primeira: a grande quantidade de automóveis que circula nas ruas com apenas uma pessoa em seu interior. Com o medo ocasionado pela violência, dar carona tem se tornado um fato pouco freqüente. A possibilidade de financiamentos e o transporte público que não corresponde às necessidades do dia-a-dia favorecem a proliferação de veículos particulares nas vias. O segundo hábito que podemos facilmente constatar tem relação com o número de pessoas que andam pelas ruas usando fones de ouvido, com a atenção voltada à música alta, bloqueando a percepção do que acontece ao redor. Essas duas observações remetem à individualização dos costumes sociais, fazendo com que o espaço urbano seja um lugar de convívio sem interação entre os seres.
Analisar o individualismo como propulsor do desencadeamento de sintomas psicológicos no comportamento humano consiste em uma relação perfeitamente possível na visão de psicólogos, antropólogos e sociólogos. A compulsão, por exemplo, pode estar ligada ao descontrole dos impulsos de compras, de alimentação, de diversão e de sexo. A sociedade em que estamos inseridos suscita atitudes dessa natureza, mas a professora e psicóloga Maria do Rosário Stotz lembra: “Freud já estudava isso no início do século passado. O sintoma não é novidade”. Em meados de 1900, portanto, a compulsão já existia. As mudanças constatadas por estudiosos e especialistas estão apenas na freqüência e no tipo de ação que desencadeiam a compulsividade. “Hoje, existe uma alteração lógica do tempo, tudo é mais rápido imaginariamente”, explica Maria ao falar sobre as condições da atualidade que propiciam o diagnóstico.
É fundamental o esclarecimento das diferenças entre o significado de compulsão para o senso comum e a compulsividade como patologia psicológica. O termo “compulsivo” é usualmente atribuído a pessoas que, por exemplo, abusam nas compras ou no consumo de alimentos, sem chegarem a condições extremas destes atos. Na interpretação da psicologia, porém, a compulsão consiste em uma doença. Neste caso, a intensidade e a causa são um pouco diferentes.
A compulsão trata-se de uma alteração da vontade - considerada uma função psíquica natural do ser humano. De acordo com Maria do Rosário, são quatro os estágios por que passa toda ação: primeiro, temos um desejo, uma intenção ou um propósito; depois, decidimos por satisfazê-lo ou não, ou seja, passamos pela etapa da deliberação com uma ponderação consciente dos motivos e conseqüências; a penúltima etapa é a da decisão; por fim, temos a execução, quando surgem as atitudes necessárias à consumação dos propósitos. Ao contrário do impulsivo, que pula as etapas de deliberação e decisão, um compulsivo passa por todas elas. O fato é que, na terceira etapa, o indivíduo com o sintoma da compulsão decide por não executar o ato e, ainda assim, não consegue responder à sua decisão e faz o que incoscientemente deseja.
A repetição e a freqüência de atos mentais ou de ações propriamente ditas caracterizam a doença. “A compulsão é um sintoma e o sintoma sempre serve para manter o organismo em equilíbrio, aliviando uma tensão psíquica e perseverando o comportamento”, detalha Rosário. Geralmente, o compulsivo evita falar sobre a doença e não gosta de demonstrar as atitudes em público.
Enquanto caminha, a garota precisa parar sucessivamente para encostar suas mãos nos lugares e objetos por que passa. Outra necessidade é a de pisar sempre no centro de cerâmicas ou lajotas no chão, sem atingir as linhas. Um rapaz verifica várias vezes se trancou a porta do carro, se tudo do que precisa está na mochila, se desligou o ferro. Não consegue manter a calma quando não repete a ação, no mínimo, cinco vezes em um curto espaço de tempo. Isso os perturba, apesar do breve alívio decorrente da ação necessária. A psicóloga Mara Regina de Souza conta que o compulsivo se exclui e individualiza seus atos. Para ela, a doença hoje em dia é mais freqüente e isso é resultado do modo de viver contemporâneo. “Vivemos em uma sociedade que cultua o consumo, em que tudo é rápido. As pessoas querem acompanhar isso e muitas vezes não podem”, detalha Mara.
Na visão da antropologia e da sociologia, a crítica aos hábitos urbanos atuais não diverge deste argumento. A professora Sônia Maluf, antropóloga e pesquisadora da área de saúde mental e cultura contemporânea, aponta a perda dos espaços de sociabilidade como a principal causa de manifestações comportamentais como a compulsividade. “O que se percebe é que vivemos uma cultura de excessos, consumo, informação. O regime capitalista cria dispositivos de dissociabilização”, comenta Sônia.
A antropóloga utiliza o exemplo dos shoppings para ilustrar sua fala, lembrando que antigamente o costume de encontros e conversas nas praças das cidades era uma tradição social. Hoje, a praça tem vitrines, é cercada pelo consumo e quem circula por ela não interage com nada além dos produtos à venda. Isso gera uma incompletude no ser e, conseqüentemente, uma necessidade de compensação que ele muitas vezes encontra em atos como a compulsão. A diferença do que propõe a psicologia, no entanto, está no fato de que a antropologia compreende a enfermidade como um fenômeno resultante de uma manifestação conjunta; ou seja, a compulsão não é entendida como algo individualizado e patológico, mas sim como um acontecimento ligado ao esvaziamento coletivo, uma conseqüência da angústia social.
A sociologia também critica a sociedade contemporânea. Felipe Jovani, professor e sociólogo, cita a mídia como motivadora da reversão comportamental do ser humano. “As pessoas são muitas vezes compelidas a serem compulsivas devido a incessantes propagandas televisivas dirigidas ao consumo”, exemplifica. Felipe compara o grande volume de novidades e atualizações tecnológicas constantes ao estímulo inconsciente ao consumo provocado nas pessoas.
Em comum aos diferentes pontos de vista está a existência da angústia de alguém acometido pela compulsão. Quando uma pessoa passa a causar sofrimento a si e aos indivíduos que com ela convivem, a melhor indicação é a procura de ajuda com tratamentos psicológicos ou alternativos. Vale lembrar que a sociedade não é a única culpada por este tipo de comportamento, mas pode ser um fator que contribui com o incentivo a determinados hábitos que afastam socialmente os seres humanos.
Duas simples observações que podemos fazer em qualquer trajeto na cidade nos permitem perceber quão os hábitos urbanos tornam-se cada vez mais fechados. A primeira: a grande quantidade de automóveis que circula nas ruas com apenas uma pessoa em seu interior. Com o medo ocasionado pela violência, dar carona tem se tornado um fato pouco freqüente. A possibilidade de financiamentos e o transporte público que não corresponde às necessidades do dia-a-dia favorecem a proliferação de veículos particulares nas vias. O segundo hábito que podemos facilmente constatar tem relação com o número de pessoas que andam pelas ruas usando fones de ouvido, com a atenção voltada à música alta, bloqueando a percepção do que acontece ao redor. Essas duas observações remetem à individualização dos costumes sociais, fazendo com que o espaço urbano seja um lugar de convívio sem interação entre os seres.
Analisar o individualismo como propulsor do desencadeamento de sintomas psicológicos no comportamento humano consiste em uma relação perfeitamente possível na visão de psicólogos, antropólogos e sociólogos. A compulsão, por exemplo, pode estar ligada ao descontrole dos impulsos de compras, de alimentação, de diversão e de sexo. A sociedade em que estamos inseridos suscita atitudes dessa natureza, mas a professora e psicóloga Maria do Rosário Stotz lembra: “Freud já estudava isso no início do século passado. O sintoma não é novidade”. Em meados de 1900, portanto, a compulsão já existia. As mudanças constatadas por estudiosos e especialistas estão apenas na freqüência e no tipo de ação que desencadeiam a compulsividade. “Hoje, existe uma alteração lógica do tempo, tudo é mais rápido imaginariamente”, explica Maria ao falar sobre as condições da atualidade que propiciam o diagnóstico.
É fundamental o esclarecimento das diferenças entre o significado de compulsão para o senso comum e a compulsividade como patologia psicológica. O termo “compulsivo” é usualmente atribuído a pessoas que, por exemplo, abusam nas compras ou no consumo de alimentos, sem chegarem a condições extremas destes atos. Na interpretação da psicologia, porém, a compulsão consiste em uma doença. Neste caso, a intensidade e a causa são um pouco diferentes.
A compulsão trata-se de uma alteração da vontade - considerada uma função psíquica natural do ser humano. De acordo com Maria do Rosário, são quatro os estágios por que passa toda ação: primeiro, temos um desejo, uma intenção ou um propósito; depois, decidimos por satisfazê-lo ou não, ou seja, passamos pela etapa da deliberação com uma ponderação consciente dos motivos e conseqüências; a penúltima etapa é a da decisão; por fim, temos a execução, quando surgem as atitudes necessárias à consumação dos propósitos. Ao contrário do impulsivo, que pula as etapas de deliberação e decisão, um compulsivo passa por todas elas. O fato é que, na terceira etapa, o indivíduo com o sintoma da compulsão decide por não executar o ato e, ainda assim, não consegue responder à sua decisão e faz o que incoscientemente deseja.
A repetição e a freqüência de atos mentais ou de ações propriamente ditas caracterizam a doença. “A compulsão é um sintoma e o sintoma sempre serve para manter o organismo em equilíbrio, aliviando uma tensão psíquica e perseverando o comportamento”, detalha Rosário. Geralmente, o compulsivo evita falar sobre a doença e não gosta de demonstrar as atitudes em público.
Enquanto caminha, a garota precisa parar sucessivamente para encostar suas mãos nos lugares e objetos por que passa. Outra necessidade é a de pisar sempre no centro de cerâmicas ou lajotas no chão, sem atingir as linhas. Um rapaz verifica várias vezes se trancou a porta do carro, se tudo do que precisa está na mochila, se desligou o ferro. Não consegue manter a calma quando não repete a ação, no mínimo, cinco vezes em um curto espaço de tempo. Isso os perturba, apesar do breve alívio decorrente da ação necessária. A psicóloga Mara Regina de Souza conta que o compulsivo se exclui e individualiza seus atos. Para ela, a doença hoje em dia é mais freqüente e isso é resultado do modo de viver contemporâneo. “Vivemos em uma sociedade que cultua o consumo, em que tudo é rápido. As pessoas querem acompanhar isso e muitas vezes não podem”, detalha Mara.
Na visão da antropologia e da sociologia, a crítica aos hábitos urbanos atuais não diverge deste argumento. A professora Sônia Maluf, antropóloga e pesquisadora da área de saúde mental e cultura contemporânea, aponta a perda dos espaços de sociabilidade como a principal causa de manifestações comportamentais como a compulsividade. “O que se percebe é que vivemos uma cultura de excessos, consumo, informação. O regime capitalista cria dispositivos de dissociabilização”, comenta Sônia.
A antropóloga utiliza o exemplo dos shoppings para ilustrar sua fala, lembrando que antigamente o costume de encontros e conversas nas praças das cidades era uma tradição social. Hoje, a praça tem vitrines, é cercada pelo consumo e quem circula por ela não interage com nada além dos produtos à venda. Isso gera uma incompletude no ser e, conseqüentemente, uma necessidade de compensação que ele muitas vezes encontra em atos como a compulsão. A diferença do que propõe a psicologia, no entanto, está no fato de que a antropologia compreende a enfermidade como um fenômeno resultante de uma manifestação conjunta; ou seja, a compulsão não é entendida como algo individualizado e patológico, mas sim como um acontecimento ligado ao esvaziamento coletivo, uma conseqüência da angústia social.
A sociologia também critica a sociedade contemporânea. Felipe Jovani, professor e sociólogo, cita a mídia como motivadora da reversão comportamental do ser humano. “As pessoas são muitas vezes compelidas a serem compulsivas devido a incessantes propagandas televisivas dirigidas ao consumo”, exemplifica. Felipe compara o grande volume de novidades e atualizações tecnológicas constantes ao estímulo inconsciente ao consumo provocado nas pessoas.
Em comum aos diferentes pontos de vista está a existência da angústia de alguém acometido pela compulsão. Quando uma pessoa passa a causar sofrimento a si e aos indivíduos que com ela convivem, a melhor indicação é a procura de ajuda com tratamentos psicológicos ou alternativos. Vale lembrar que a sociedade não é a única culpada por este tipo de comportamento, mas pode ser um fator que contribui com o incentivo a determinados hábitos que afastam socialmente os seres humanos.