Restavam poucas fichas no bolso. Ele tinha ido ao cassino ilegal para tentar, com suas últimas economias, salvar o mês que havia sido duro demais para suas finanças. Aos 34 anos, Renan tinha muita sorte. Tirando grandes apostas, como Mega-Sena e afins, ele nunca havia perdido dinheiro com jogos de azar. Fossem bingo de igreja ou concursos de supermercados, ele sempre ganhava um prêmio, ainda que nem sempre fosse o principal.
Porém agora era diferente. Com a mulher doente, internada no hospital, ele já havia gastado quase tudo. Até o carro zero quilômetro que ganhara meses antes em uma promoção, ele vendera para pagar os gastos com hospital e o aluguel de uma kitnete. Eles eram do interior do Estado e o câncer raro de sua esposa só poderia ser tratado na Capital. Mas ela necessitava de cuidados e carinho constantes, não só dos médicos e enfermeiros, como também do marido, que era sua única família agora, já que ela era filha única e seus pais já haviam morrido. O casal ainda não tinha filhos.
Ela estava com 27 anos. Antes da doença, que fora descoberta há cerca de seis meses, Joana era uma mulher muito bonita. Na cidade, suas formas eram apreciadas pelos homens de maneira tão grosseira às vezes, que lembravam a personagem-título Malena, interpretada pela bela Monica Bellucci, no filme do diretor Giuseppe Tornatore. Porém o tratamento a deixara sem os belos cabelos castanhos escorridos até a cintura. Seus olhos verdes, outrora brilhantes e ávidos, transbordando uma mistura de paixão ardente com a mais doce ternura de um carinho demorado embaixo de uma árvore num fim de tarde no outono, agora eram opacos e vazios. Quem a via naquela situação já não pensava mais se tratar de um ser vivo. Ela vegetava sobre os lençóis brancos da cama de hospital.
Mas a paixão de Renan era mais forte que tudo. Ele ainda tinha familiares vivos, muitos dos quais se prontificaram a ajudá-lo com o tratamento de Joana. Ele recusou o auxílio de todos. Em sua mente, ninguém, além dos médicos e enfermeiros do hospital seria mais capacitado para segurar as mãos da mulher enquanto a morte, aos poucos, se apresentava diante dela. Na verdade, nas duas últimas semanas, ele também já começava a duvidar da competência dos profissionais.
Dentre os que cuidavam de Joana, havia um residente, com a mesma idade dela. Ele foi designado pelo chefe de oncologia para também aprender com esse caso. João era o melhor aluno de sua turma e sabia que se a superasse a doença, além de ser quase um milagre, sua carreira teria no currículo algo realmente importante para ser mostrado depois. Desde o início, ele acompanhava Joana e era quem mais cuidava dela, além do marido. Enquanto ela ainda falava – agora apenas balbuciava algumas sílabas – os dois passavam algumas horas contando um ao outro sobre a vida deles, trocando intimidades.
Certo dia, foram interrompidos aos risos por Renan, que chegou ao quarto e perguntou o motivo de tanta alegria. O médico quis começar a falar, mas Joana o interrompeu e disse: “Acredita que ele também caiu de bicicleta e quase morreu quando tinha nove anos? Igual ao que aconteceu comigo quando era pequena, com a mesma idade. Só faltava termos nascido no mesmo dia.” Renan não entendeu direito, mas também esboçou um sorriso. Era impossível não se sentir alegre na presença de Joana.
Ele morreria se qualquer coisa os separasse. Para que isso não acontecesse, estava diante daquela mesa, pronto para entregar a alma ao diabo. O jogo era o famoso 21, também conhecido como Blackjack. A sorte estava prestes a traçar um destino com o qual Renan jamais sonhara. Durante toda a noite, havia perdido algumas centenas de reais na mesa de jogo. Sua última aposta era de 500 Reais. Era tudo ou nada.
Um outro homem quis aumentar a aposta, mas Renan não teria mais dinheiro e pediu para que ele não fizesse isso. Brevemente, contou os motivos que o levaram àquela mesa e implorou para que a aposta permanecesse como estava e o jogo continuasse. Se ele perdesse, aqueles eram seus últimos centavos. Resignado, o velho cheio de dinheiro resolveu fazer uma boa ação e segurar a aposta, apenas pagou o que Renan colocou e o jogo continuou.
Recebeu as duas cartas: um três de paus e um quatro de ouros. Estava difícil de ganhar. Ele precisava no mínimo de uma carta real, que vale 10 pontos. No Blackjack, ganha quem alcançar 21 pontos na soma das cartas ou quem tiver a maior soma dentre os valores delas e perde quem extrapolar os 21 pontos ou possuir uma soma inferior a de seus oponentes.
Com aquele dinheiro, poderia ir embora o último suspiro de Joana. Ele suava em bicas. As cartas começavam a amolecer, diante de tanto suor que escorria por suas mãos. Puxou outra carta: era o 10 que ele precisava. Somou e ainda estava com 17 pontos. Um quatro e ganharia o jogo. Essa pontuação é arriscada demais, pois ainda está um pouco longe dos 21 para se fechar a partida, o velho ou a banca poderiam ter somas maiores. Ele resolveu se arriscar e puxou outra. Veio um dois de espadas. Era hora de parar e ele sabia disso. Não arriscou comprar outra carta e avisou que estava pronto para mostrar seu jogo.
No hospital, Joana começara a passar mal. Uma falta de ar, seguida de uma breve parada cardíaca colocaram toda a UTI de prontidão para socorrê-la. O jovem residente estava na equipe que cuidou dela naquele momento. Passado o susto inicial, os enfermeiros saíram um pouco e o médico ficou cuidando da paciente mais alguns minutos. Num momento, ela recobrou um pouco a consciência. Nunca se saberá o quanto. Pediu para segurar a mão do médico e disse: “Eu te amo. Obrigada por tudo.” Seus olhos então se fecharam, para nunca mais se abrirem.
De volta ao cassino, o velho colocou as suas cartas: estava com 18 pontos. O coração de Renan já se preparava para bater mais forte e comemorar a vitória. Seria a primeira da noite e talvez a primeira de muitas, que poderiam dar o dinheiro para o tratamento da amada. Então, o crupiê desceu as cartas da banca: a soma fechava 20 pontos e Renan acabava de perder tudo.
Instantes depois, desolado na porta do cassino, o celular dele tocou, trazendo a notícia do falecimento de Joana. Todavia, os detalhes do acontecido, incluindo as palavras proferidas por ela, não foram-lhe ditos. Ele correu e se atirou na frente de um caminhão. Morreu e foi enterrado com ela.
Porém agora era diferente. Com a mulher doente, internada no hospital, ele já havia gastado quase tudo. Até o carro zero quilômetro que ganhara meses antes em uma promoção, ele vendera para pagar os gastos com hospital e o aluguel de uma kitnete. Eles eram do interior do Estado e o câncer raro de sua esposa só poderia ser tratado na Capital. Mas ela necessitava de cuidados e carinho constantes, não só dos médicos e enfermeiros, como também do marido, que era sua única família agora, já que ela era filha única e seus pais já haviam morrido. O casal ainda não tinha filhos.
Ela estava com 27 anos. Antes da doença, que fora descoberta há cerca de seis meses, Joana era uma mulher muito bonita. Na cidade, suas formas eram apreciadas pelos homens de maneira tão grosseira às vezes, que lembravam a personagem-título Malena, interpretada pela bela Monica Bellucci, no filme do diretor Giuseppe Tornatore. Porém o tratamento a deixara sem os belos cabelos castanhos escorridos até a cintura. Seus olhos verdes, outrora brilhantes e ávidos, transbordando uma mistura de paixão ardente com a mais doce ternura de um carinho demorado embaixo de uma árvore num fim de tarde no outono, agora eram opacos e vazios. Quem a via naquela situação já não pensava mais se tratar de um ser vivo. Ela vegetava sobre os lençóis brancos da cama de hospital.
Mas a paixão de Renan era mais forte que tudo. Ele ainda tinha familiares vivos, muitos dos quais se prontificaram a ajudá-lo com o tratamento de Joana. Ele recusou o auxílio de todos. Em sua mente, ninguém, além dos médicos e enfermeiros do hospital seria mais capacitado para segurar as mãos da mulher enquanto a morte, aos poucos, se apresentava diante dela. Na verdade, nas duas últimas semanas, ele também já começava a duvidar da competência dos profissionais.
Dentre os que cuidavam de Joana, havia um residente, com a mesma idade dela. Ele foi designado pelo chefe de oncologia para também aprender com esse caso. João era o melhor aluno de sua turma e sabia que se a superasse a doença, além de ser quase um milagre, sua carreira teria no currículo algo realmente importante para ser mostrado depois. Desde o início, ele acompanhava Joana e era quem mais cuidava dela, além do marido. Enquanto ela ainda falava – agora apenas balbuciava algumas sílabas – os dois passavam algumas horas contando um ao outro sobre a vida deles, trocando intimidades.
Certo dia, foram interrompidos aos risos por Renan, que chegou ao quarto e perguntou o motivo de tanta alegria. O médico quis começar a falar, mas Joana o interrompeu e disse: “Acredita que ele também caiu de bicicleta e quase morreu quando tinha nove anos? Igual ao que aconteceu comigo quando era pequena, com a mesma idade. Só faltava termos nascido no mesmo dia.” Renan não entendeu direito, mas também esboçou um sorriso. Era impossível não se sentir alegre na presença de Joana.
Ele morreria se qualquer coisa os separasse. Para que isso não acontecesse, estava diante daquela mesa, pronto para entregar a alma ao diabo. O jogo era o famoso 21, também conhecido como Blackjack. A sorte estava prestes a traçar um destino com o qual Renan jamais sonhara. Durante toda a noite, havia perdido algumas centenas de reais na mesa de jogo. Sua última aposta era de 500 Reais. Era tudo ou nada.
Um outro homem quis aumentar a aposta, mas Renan não teria mais dinheiro e pediu para que ele não fizesse isso. Brevemente, contou os motivos que o levaram àquela mesa e implorou para que a aposta permanecesse como estava e o jogo continuasse. Se ele perdesse, aqueles eram seus últimos centavos. Resignado, o velho cheio de dinheiro resolveu fazer uma boa ação e segurar a aposta, apenas pagou o que Renan colocou e o jogo continuou.
Recebeu as duas cartas: um três de paus e um quatro de ouros. Estava difícil de ganhar. Ele precisava no mínimo de uma carta real, que vale 10 pontos. No Blackjack, ganha quem alcançar 21 pontos na soma das cartas ou quem tiver a maior soma dentre os valores delas e perde quem extrapolar os 21 pontos ou possuir uma soma inferior a de seus oponentes.
Com aquele dinheiro, poderia ir embora o último suspiro de Joana. Ele suava em bicas. As cartas começavam a amolecer, diante de tanto suor que escorria por suas mãos. Puxou outra carta: era o 10 que ele precisava. Somou e ainda estava com 17 pontos. Um quatro e ganharia o jogo. Essa pontuação é arriscada demais, pois ainda está um pouco longe dos 21 para se fechar a partida, o velho ou a banca poderiam ter somas maiores. Ele resolveu se arriscar e puxou outra. Veio um dois de espadas. Era hora de parar e ele sabia disso. Não arriscou comprar outra carta e avisou que estava pronto para mostrar seu jogo.
No hospital, Joana começara a passar mal. Uma falta de ar, seguida de uma breve parada cardíaca colocaram toda a UTI de prontidão para socorrê-la. O jovem residente estava na equipe que cuidou dela naquele momento. Passado o susto inicial, os enfermeiros saíram um pouco e o médico ficou cuidando da paciente mais alguns minutos. Num momento, ela recobrou um pouco a consciência. Nunca se saberá o quanto. Pediu para segurar a mão do médico e disse: “Eu te amo. Obrigada por tudo.” Seus olhos então se fecharam, para nunca mais se abrirem.
De volta ao cassino, o velho colocou as suas cartas: estava com 18 pontos. O coração de Renan já se preparava para bater mais forte e comemorar a vitória. Seria a primeira da noite e talvez a primeira de muitas, que poderiam dar o dinheiro para o tratamento da amada. Então, o crupiê desceu as cartas da banca: a soma fechava 20 pontos e Renan acabava de perder tudo.
Instantes depois, desolado na porta do cassino, o celular dele tocou, trazendo a notícia do falecimento de Joana. Todavia, os detalhes do acontecido, incluindo as palavras proferidas por ela, não foram-lhe ditos. Ele correu e se atirou na frente de um caminhão. Morreu e foi enterrado com ela.
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