Estávamos um dia passeando, eu e meus amigos, quando vi seu rosto pela primeira vez. Cidade pequena, sabe como é, um novo rosto é facilmente detectado por todos. Eu conhecia todos os habitantes e isso não é exagero. Claro, tinha mais ou menos afinidade e contato com alguns, nem todos podiam ser considerados, como dizem os jovens hoje, “parceiros”. Mas conhecia todas as faces de meus vizinhos. Então ela caminhava com a mãe. Seus olhos transmitiam uma inocência que nunca havia visto antes. Ela era quase uma santa.
Parei e fitei-a por uma fração de segundo. Meus amigos nem a viram naquele dia. Só o fariam semanas depois, numa festa tradicional onde ela foi, também acompanhada dos pais. Estavam empolgados com a conversa sobre o jogo de domingo. Os torcedores do time vencedor caçoavam dos perdedores, mas tudo com muito respeito entre si. Eram bons tempos aqueles, sem discussões por motivos fúteis. Ainda sinto saudades daquela época. Aos 21 anos, eu pouco sabia da vida, mas só percebi isso agora, no alto dos meus 70 e alguns.
Enfim, percebi que ela notou o grupo de rapazes falando alto pela rua. Não tinha como ela deixar de nos ver, tamanha a algazarra que fazíamos. Todavia, minha voz baixou depois de vê-la. Senti algo diferente naquele momento. Cheguei a ficar completamente calado e meus amigos só perceberam quando chegamos ao bar e, depois de tomarmos uma cerveja, cada um tomar o rumo de casa. Foi quando Aurélio me questionou porque ficara quieto tanto tempo, mas desconversei e não disse o motivo.
O motivo era uma garota de pele clara, cerca de 1,70m, magra, mas com algumas curvas, naquela época bastante elogiáveis, hoje, nem tanto. Olhos verdes que, com o perdão do uso de um termo tão batido, pareciam duas pedras de jade encravadas no rosto rosado pelo pó-de-arroz. Seus lábios eram finos, permeados com um batom levemente rosado, que servia apenas para realçar a cor e contrastá-los com as bochechas, tudo muito sutil. Ela estava usando um vestido que ainda hoje está em perfeito estado, guardado na memória. Se tivesse o talento para as artes gráficas, poderia redesenhá-lo com precisão.
Nos dias seguintes, comecei a perguntar a um e outro detalhes sobre ela, quem era, de onde veio, quem são seus pais. Para cada um, perguntava alguma coisa diferente, tudo para não levantar suspeitas de meu interesse. Então descobri que ela era filha de um militar do exército, que havia sido transferido para a nossa cidade com o intuito de montar um novo batalhão. Ele pesquisaria a região e os homens disponíveis, descobriria suas principais habilidades e enviaria os dados ao Estado Maior, que se encarregaria da criação dessa nova unidade. O trabalho dele tinha prazo de início e término e ele iria embora assim que tivesse completado sua missão.
O problema, para mim, foi que não descobri essa última parte a tempo. Depois de saber tudo sobre a vida dela, comecei a observá-la de longe quando caminhava com a mãe pela praça da cidade. Nos finais de semana, esperava a missa para encontrá-la. Comecei a flertar de longe e aos poucos fui me aproximando. Além disso, talvez tenha sido meu maior erro, também fui me apaixonando por ela.
Quando ouvi sua voz pela primeira vez, senti-me hipnotizado, como nas histórias dos navegadores com as sereias que os seduziam até as pedras, onde os navios batiam e naufragavam. Foi mais ou menos o que ocorreu comigo. A diferença é que estávamos em terra bem firme e meu navio era o coração.
Então, chegou o dia da festa de Santo Antônio em nossa cidade. Apesar de nem a igreja ser dedicada a esse santo, essa era uma das festas mais populares naquele povoado. Só perdia para as comemorações de fim de ano e para o feriado da Independência. Talvez tenha sido até a fama de nossas comemorações no dia sete de setembro que fizeram o exército se interessar pela nossa gente. Dadas as devidas proporções, era uma festa tão grande quanto à da capital do país, Rio de Janeiro. Todo mundo da região vinha ver. Certa vez, antes da instalação do exército, o prefeito foi até o comando estadual e, de tanta insistência, convenceu os generais a mandarem um tanque de guerra para as comemorações.
Lá eu a vi de novo. Eu estava novamente com meus amigos, mas sorrateiramente saí de perto deles e fui espreitá-la de longe. Ela estava o tempo todo com os pais. Devido às minhas insistentes tentativas de flerte, a moça já sabia que eu queria conhecê-la. Havia uma roda gigante e seus pais resolveram levá-la, pois ela nunca tinha estado numa. O problema é que em cada banco cabiam apenas duas pessoas sentadas. Então, vendo a cena da indecisão sobre quem subiria com ela, cheguei próximo e me ofereci a fazer companhia para a garota que morria de medo de altura.
Seus pais foram num banco onde era possível nos ver muito bem, logo atrás de nós. Não liguei para isso e comecei a conversar, enquanto a roda girava. Ela era bem tímida no começo, mas em dois minutos se soltou e passou a falar bastante, por vezes mais que eu. Bem baixinho, no ouvido dela, combinamos de nos encontrar antes do fim da festa. Seria a minha chance de declarar minhas intenções.
Dito e feito. Como num passe de mágica, ela conseguiu se livrar do pai militar e da mãe carola de igreja para nos encontrarmos no lugar combinado, sem atrasos. Falamos por cerca de três minutos, então, quando terminei de dizer o que pretendia com ela, trocamos um beijo no rosto um do outro.
A partir daquele dia, meus amigos já haviam percebido – e bem – a presença dela na cidade. Da mesma forma, em dois dias notaram meu interesse nela. Nós trocávamos olhares enquanto ela passava na rua. No alto de seus 18 anos, estava começando a fazer amigas nos dias que freqüentava a igreja. Eu achava aquilo o máximo. “Linda e pura”, pensei.
E realmente ela era. Ficamos mais duas semanas trocando olhares até que consegui conversar com ela na saída da missa de domingo. Foi rapidamente e apenas pudemos marcar outro encontro. Seria dali a dois dias, atrás das casas da praça da cidade. Novamente, ela cumpriu o combinado e chegou com pontualidade ao local.
Esses detalhes me enchiam cada vez mais de amor por ela. Neste dia, enfim, a beijei. Acho que foi o primeiro beijo dela. Um momento mágico. Só assim é possível descrever aqueles minutos. Apaixonadamente nos beijamos por cerca de meia hora. Ela foi embora e marcamos outro encontro. Combinamos que, se em três encontros continuássemos nos amando, assumiríamos a relação diante de nossos pais.
Contudo, ela não cumpriu o acordo e jamais apareceu ao segundo encontro. O pai dela terminara o trabalho antes do previsto e a família foi embora da cidade. Tudo durou cerca de um mês e meio, desde o dia em que a vi pela primeira vez. A rua onde marcamos já não existe mais, mesmo assim, por anos, voltei lá atrás daquele beijo. A vida seguiu e casei-me com outra. Eu a amo a minha esposa até hoje, mesmo estando enferma e próxima da morte.
Cada dia que passa, lembro daqueles lábios úmidos tocando os meus, lembro da respiração dela levemente ofegante, o perfume de jasmins, tudo. Com a mulher que me casei, não fui santo, eu a traí algumas vezes no início do casamento, Na verdade, eu a traí no momento em que nos conhecemos, pois jamais me esqueci do beijo que nunca mais encontrei. Apesar de tudo isso ainda viver comigo, tive uma vida feliz e penso que poderei morrer logo, em paz. Talvez na outra vida a encontre e prove aquela boca por toda a eternidade.