O vôo das borboletas
Até aquele dia éramos, todos, larvas em ovos, presos dentro das paredes da sala de aula. Nenhum de nós tivera experiência parecida. Era nosso primeiro desafio diante de uma grande reportagem. O local e o tema escolhidos ainda eram estranhos à maioria dos colegas. Eu era um dos poucos que sabiam em que tipo de terreno entrávamos. Como toda vida que acaba de nascer, estávamos confusos com o mundo que se abria diante de nossas pupilas ainda dilatadas com os primeiros sinais de luz daquela manhã.
Mesmo cursando a sexta fase de jornalismo, a insegurança ainda persistia em muitos de nós. Aliás, este é um defeito não só das escolas, mas do jornalismo de modo geral. O contato humano tem perdido espaço dentro das redações. No seu lugar, pessoas presas em suas mesas, telefones, e-mails. Não se fala mais com as pessoas diretamente, algo que deveria ser uma premissa da profissão. Os jornalistas, que antes agiam como borboletas, voando em busca de novas flores, atrás de uma boa história para contar, hoje têm as suas asas cortadas no nascimento e não conhecem mais o doce pólen que está em cada rosto, nas ruas.
Dia 19 de outubro. Era a primeira vez que íamos ao Centro Educacional Dom Jayme de Barros Câmara. Um veículo da universidade estava alocado para levar todos até o local, mas a reserva foi cancelada na véspera. Por sorte, como vários de nós estavam de carro, nos dividimos em quatro grupos e fomos.
Eu fui com Juliana Louzeiro, formanda de Psicologia. Ela nos auxiliou no contato com as crianças e com a diretoria do Dom Jayme. Ouvíamos música. Para meus ouvidos, a palavra música, nesse caso, deveria vir com aspas. Mas resisti à tentação para não me indispor com a moça. Juliana ajuda a coordenar o núcleo de estudos do curso que cuida de questões comuns ao tema deste jornal. Está usando a experiência obtida na parceria entre o Curso de Psicologia e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil para produzir seu trabalho de conclusão de curso.
Ao chegarmos, confirmei que a realidade avaliada em três reuniões na sala de aula, preparativas à vivência, realmente era familiar à minha história. Minha mãe foi professora, durante quase 20 anos, em uma escola pública no Bairro Forquilhinhas, em São José. Só estudei lá por seis meses, mas acabei crescendo próximo àquele mundo, tanto da escola, quanto do bairro pobre e violento. Descemos do carro e cumprimentamos a coordenadora do Centro Educacional, Maria Samira Savi Pini. Ela nos levou a uma sala, onde conhecemos alguns dos personagens que o leitor encontrará nas páginas do Jornal Laboratório Fato & Versão.
O clima entre nós e as crianças ainda era pesado. Nós acabáramos de romper o ovo e, larvas jovens como éramos, até aquele instante, sequer conseguíamos nos integrar às crianças. Raquel Wandelli, nossa professora de Redação 3, nos ajudou a quebrar o gelo. Gravamos depoimentos sobre nossas expectativas para o futuro - algo do tipo: "o que eu quero ser quando crescer". Uma de minhas colegas, Tainá, pegou a deixa e continuou a brincadeira.
Devido à um problema com a preparação do material que nos apresentaria, Liane Vaz chegou ao Dom Jayme com quase uma hora de atraso. Ela faz parte do Fórum Estadual para Erradicação do Trabalho Infantil em Santa Catarina. Durante quase duas horas, discursou sobre o tema para nós, as crianças e os professores que ocupavam a sala. Em alguns momentos, o coração de todos era tocado por relatos que escapavam dos lábios das crianças, como o do menino que falou de uma prima pré-adolescente que cuidava, sozinha, de mais dois irmãos. Liane tentou abrir a percepção daquelas crianças sobre determinadas atividades às quais estavam expostas que eram formas disfarçadas de trabalho infantil. Ao final, foi a vez de Eliane Roque, do Fórum Catarinense de Exploração Sexual Infanto-Juvenil, dar um depoimento contundente, direto e emocionado.
Alguns de nós saíram da instituição próximo ao meio-dia - a previsão inicial era 11h. Ficou a promessa do retorno dentro de uma semana para conhecermos algumas das atividades do centro e, efetivamente, fazer as reportagens. Mas o que se passou naquelas horas já deixou marcas que levaríamos ao nosso próximo estágio de desenvolvimento. Histórias tristes, de trabalho pesado, de vida difícil, pobre, de fome e de miséria escondiam-se atrás de sorrisos abertos, olhos que ainda brilhavam e reluziam esperança. Já havíamos recebido nossa missão. Precisávamos contar essas histórias aos nossos leitores. Fomos à pupa, nossa próxima fase de evolução, sabendo que a tarefa de crescer, naquele momento, não seria fácil.
Abro aqui uma pausa para contar algo inusitado antes da nossa segunda visita ao D. Jayme: a minha volta até a Unisul. Eu, Carmine e Lisandra retornamos de carona com nossa professora. A excitação e a ansiedade pelas declarações que ouvíramos minutos antes a fez esquecer as regras de trânsito. "Lombada!", eu avisei, mas ela não viu e tocou direto. "Aqui você pára", tentei, sem sucesso, lembrar. Mas as placas vermelhas pareciam não ter significado. Acredito que ela não dirija sempre desta forma, mas, sem dúvida, a emoção tomou conta das decisões dela ao volante naquele dia. Em certo momento, Carmine segurou em minha mão e revelou: "Samuka, eu to com medo." Tendo este relato em mãos, o leitor pode deduzir que o final da história foi feliz e saímos todos ilesos.
Dia 19 de Outubro. Ainda éramos pupas ao sair da universidade. Não havíamos quebrado o casulo que nos aprisionava há uma semana. Dessa vez, não cancelaram nosso transporte. Fomos todos em uma van até o Centro Educacional. Era agora ou nunca. As borboletas tinham que voar. A programação do dia inclua um tour pela instituição. O propósito era conhecer os trabalhos desenvolvidos para ocupar o tempo das crianças e adolescentes, teoricamente, tirando-as do trabalho.
Não éramos os únicos que já se sentiram presos naquele lugar. Quando da fundação, o Dom Jayme era uma espécie de orfanato. Fazia parte da Fundação Catarinense do Bem-Estar do Menor (Fucabem). No entanto, os internos estudavam junto com crianças da comunidade local e, em alguns finais de semana, saíam para brincar fora do centro.
A primeira atividade que presenciamos foi a aula de dança, da qual participavam algumas meninas. Naquela pequena construção, todos perceberam que as pupas estavam se mexendo. Por mais incrível que possa parecer, a música de Wanessa Camargo e os movimentos das meninas no ritmo das notas que saíam do pequeno aparelho de som nos sensibilizaram. Logo depois foi a vez da aula de Tae-Kwon-Do. A disciplina dos meninos e os golpes que davam no ar pareciam bater diretamente nos casulos, ajudando as borboletas a se libertarem.
Caminhamos para ver a cozinha, na qual as crianças tinham aula de panificação. Ali as primeiras borboletas começaram a aparecer. O sabor das broas de amendoim que os alunos estavam fazendo adoçou o coração de alguns de nós. Depois foi a vez de vermos algumas oficinas de arte. As peças coloridas chamaram a atenção das borboletas, que romperam definitivamente seus casulos e foram atrás das peças mais parecidas com as cores de suas asas.
A partir daquele momento, todos já haviam escolhido os protagonistas das histórias que iriam contar, direcionado suas pautas e, principalmente, se transformado em borboletas. O passeio continuou. Fomos até o ginásio, que estava vazio, e depois cada um foi fazer o trabalho que lhe foi confiado.
A manhã passou rápido naquele dia. Não foi suficiente para que todos pudessem terminar as matérias que lhes foram delegadas. Alguns, como eu, retornaram ao Dom Jayme, fosse para trazer à memória tempos passados ou, simplesmente, completar o trabalho. No entanto, no momento da volta à faculdade, algo foi possível perceber nos olhos de todos. As borboletas, naquele dia, enfim, aprenderam a voar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário