Florianópolis: 281 anos de pequenas estórias
Florianópolis, 17 de março de 2007. Nas calçadas, o conjunto: a agonia na latinha à espera da caridade entre os passos apressados e, por vezes, despercebidos. Entre prédios antigos e construções mais recentes, muitas janelas instigam os olhares de quem está alguns andares acima; não raro, podem-se observar pessoas tomadas pela curiosidade voyeurista com seus olhares predestinados à análise dos caminhos alheios. Caminhar pelo centro da cidade é aguçar os sentidos, ver o não visto, discernir a calmaria do canto de um bem-te-vi entre o estardalhaço do som urbano. Em meio a tantos paradoxos, a manhã de um sábado se expressa. O fato: o tempo.
Antes o mar, hoje a civilização. O aterro soterrou o charme do mar que batia no mercado público e no prédio da alfândega. Pelas ruas Deodoro, Trajano, Jerônimo Coelho, milhares de pessoas descem em direção ao largo da Alfândega, ao Mercado Público, ao Camelódromo, ou de onde mais for possível chegar até ali. Todo o dia, dia e noite. Será que dá tempo de pegar o próximo ônibus?
Cinco minutos sentados à mesa de plástico disposta no calçadão do Mercado Público são: um senhor que atravessa o Largo da Alfândega carregando a arte, um quadro em suas mãos. Som de fundo: “Paranauê, Paranauê, Paraná”; os capoeiristas cumprem sua dança, atemporais. Quem quer apreciar, pára. Quem não quer, continua no ritmo desenfreado dos passos. A buzina do vendedor de algodão doce, o som das flautas dos peruanos, o samba nos alto-falantes do mercado, o vaneirão nas lojas de eletrodomésticos e os burburinhos de milhares de pessoas que circulam ali, formam uma orquestra totalmente desconexa. A desordem sonora ilustra a vida, sinestésica. Além dos sons os cheiros. No Mercado, os peixes, a cerveja no bar; em um lado do prédio da Alfândega, os embutidos, as frutas, os biscoitos; do outro, o fedor de esgoto que sobe pelos bueiros.
Um menino brinca com uma bola presa a um elástico; a bola vai-e-vem, é amarela. O moço dos olhos azuis acompanha a mãe, curvado, guiando-a: a mão direita apoiada no ombro esquerdo da senhora de cabelos poucos, brancos e de tão baixa estatura. O turista carrega prancha. Os homens bebem e conversam em outra mesa. Paredes descascadas, bares, mercearias, loja de presentes, papelaria, roupas: o Mercado é Público para todos os públicos. O bater das asas dos pombos levanta as migalhas de pão e a sujeira que outrora foi varrida pela moça funcionária da Comcap. Os atos da vida e a vida entre atos. “Paranauê, Paranauê, Paraná”.
Tem feirinha na praça! Entre tantos tipos de produtos artesanais, o chileno Joseph vende artigos hippies feitos em couro por ele e pelos filhos. Simpatia estampada no sorriso que não demora a aparecer, ele conta que saiu do Chile em 1981 por causa da ditadura. “Nunca mais voltei pra lá”, falou Joseph.
Pelas ruas, as placas dizem “Esmola não dá dignidade, ajude a criar oportunidade”. No chafariz, a dignidade se esvai como as gotas da água que jorram. A indiazinha triste, coberta por um manto sente o cheiro da pipoca despertar-lhe o estômago. O cachorro fica observando as pessoas na rua, procurando um olhar que cruze com o dele. O animal já desistiu da menina. Sabe que talvez ele ainda tenha mais a oferecer a ela do que o contrário.
“Aqui tem um chorinho”, diz o vendedor de caldo de cana do Mercado, completando o copo. Os olhos de um senhor pobre brilham depois do gesto cordial: um garoto pagou-lhe uma garapa. Depois disso, apenas seguiu seu caminho. O mesmo caminho em que cruzam tantas estórias. A alguns metros dali, a barbearia do Seu Vargas, na Jerônimo Coelho, permanece há 46 anos com freguesia fiel. “Sou aposentado, mas sem o trabalho eu não vivo”, contou Waldir Vargas. Num espaço apertado, sentado a um degrau, ele já não pode ouvir tão bem, mas não se cansa de observar o movimento. “Minha vida faz parte disso”, exclamou.
Arielli Guedes Secco
Samuel da Silva Nunes